Gosta deste blog? Então siga-me...

Também estamos no Facebook e Twitter

quinta-feira, 1 de março de 2018

A Escolha do Jorge: “Praia Lontano”

“Prefiro a humana inveja à humana curiosidade…” (p. 51)

Tive conhecimento do autor há algumas semanas através das redes sociais, pouco antes da edição de “Praia Lontano”, uma obra que reúne quinze contos e que constitui uma grande surpresa neste início de ano. A obra é publicada poucos meses após a edição do seu livro de poesia, “Estrada dos Prazeres”, ambas com a chancela da editora Letras Paralelas.
      Apesar da pouca informação disponível sobre as obras de Pedro Góis Nogueira, rapidamente fiquei com curiosidade em relação a este “Praia Lontano”, uma vez que sou grande apreciador de contos ainda que o género literário não seja dos mais lidos e apreciados no nosso país.
      O primeiro conto, “Praia Lontano”, o que dá título à obra, atrai de imediato o leitor para a
especificidade da escrita do autor, havendo como que uma linha contínua a unir os vários contos. Ao ler o conto de abertura, tive uma vaga sensação de ter regressado às ilhas, como se ali, no decurso da narrativa, constassem episódios que me eram de certa forma familiares dado, talvez, a exiguidade e a geografia das ilhas que promove um certo modo de vida que lhe é específico e, não raras vezes, estranho a quem é de fora, além do carácter insólito de algumas das histórias apresentadas.
      A conquista foi imediata para a restante leitura da obra. Os dados estavam lançados sendo raro acontecer uma primeira obra de ficção prender a minha atenção, tanto pela qualidade da escrita, como pela originalidade das histórias trazidas a conto.
      Lisboa é o centro nevrálgico da grande maioria dos contos. Os personagens vivem e deambulam na cintura urbana da cidade com todos os tiques que habitualmente reconhecemos naquilo que nos é próprio, característico, não esquecendo todos os aspectos da vida quotidiana em permanente mutação.
      A par desta Lisboa que pode ser a grande personagem de toda a obra, podemos associar-lhe a melancolia e a solidão, traços da cultura portuguesa preconizados pela escrita e pelo fado, sempre o destino, mas também, nalguns dos contos, os personagens sentirem necessidade de fuga da grande cidade, como o escritor que se recolhe numa ilha, no conto de abertura. Ou no conto “Lobo à Colina para Alcântara” em que o narrador se assume como um lobo e que a partir de uma das colinas de Lisboa observa tudo e todos, fazendo uma análise deveras introspectiva da sociedade contemporânea, num apelo à celebração da vida que se mostra cada vez mais enfraquecida e inerte. “Uivo a isso, uivo a isso. Vivam-na, pois, vocês, humanos, pois então, já que não podem, já que não sabem uivar e não fazem ideia do que perdem, pois que o celebrem. Celebrem a isso. À assombrosa ponte e a esse [Álvaro de Campos] que existiu e não existiu, mas existiu.” (p. 52)
     A ironia, o humor são outros dos traços que unificam os contos de “Praia Lontano”, não esquecendo as inúmeras alusões a escritores de referência da literatura ocidental. Em quase todos os contos, é possível detectar estas notas unificadoras, a essência da escrita, das ideias do autor, identificando-lhe o tom que lhe é característico. Contos como “Ela Que Vela” e “Manhã Piscina Caixa Gravação”, dos mais breves, os dois últimos da obra, apresentam-se, na minha opinião, como uma ode aos escritores e à literatura em geral. É tão raro encontrar esta luz e estas palavras que, com tantos ingredientes, se transformam em arte proporcionando prazer aos sentidos daqueles que os degustam.
      Dificilmente esqueceremos personagens como a astróloga oportunista, o lobo, os indivíduos que praticam Jujitsu, o sapateiro, o homem do café que falava “portuñol” ou as amigas viciadas nas redes sociais de onde surge a tirada “O que tu és é uma drogada da internet.” (p. 74)
      Mas sim, temos escritor! Uma surpresa agradável num deserto que se apresenta cada vez mais árido no panorama nacional e que, não raras vezes, somos confrontados com a tentativa de levar gato por lebre. Um começo promissor!

Excerto do conto “Manhã Piscina Caixa Gravação”
“Dois de uma leitura de Luiz Pacheco (Exercícios de Estilo) do melhor da literatura portuguesa do século XX, a espaços, entre poças (tantas poças), gente esfomeada, gente pobre, pobre miséria de gente. Escrever português, literatura dura, pura, de essência: aberturas revolucionárias, arte & estilo, estratégia ataque-ataque, tiradas marciais, sublimadas carpintarias. Chef literário de primeira, hotelaria de rua, restauração da sargeta. No silêncio das estantes, beber um copo, esquecer. Alfarrabistas fizeram disso um dinheirão. Fazem. É essa a imortalidade literária? Junte-se as dezenas de escritores voga directa ao esquecimento proporcional à fama do momento, temperem-nos com uns poucos, mas bons poucos de bons, depois aumentem-lhes o lume, inflamem bem, inflamem, que é para nos despacharmos no firmamento dos anos para as décadas das décadas dos séculos, tem de ser rápido quanto mais não seja temos ainda os séculos dentro dos séculos. E esta panela é só um país: Portugal. Portugal Continental e ilhas. Imaginem então um continente inteiro.” (p. 185)

Texto da autoria de Jorge Navarro

Sem comentários:

Enviar um comentário